
Assim como o Rio Negro e Solimões têm o famoso ponto de intersecção entre os rios, talvez seja no Odin’s Krieger Fest o ponto entre a cultura medieval e a brasileira, em um mix de hidromel, performances, itens e, sempre, a boa música. Este ano não foi diferente, ainda que os vikings tenham dançado a quadrilha de São João com o evento inaugural do Odin’s Krieger Party – Liddledin, em São Paulo, um esquenta que ocorreu no fim de junho (clique aqui para acessar a nossa resenha completa do evento) e serviu tanto como termômetro, quanto como uma forma de gastar a ansiedade pela festa que já sabíamos que teríamos agora em novembro, com a estreia do Nanowar of Steel nos palcos brasileiros ao lado do Heidevolk, mestres holandeses que retornavam após nove anos às terras tupiniquins.
Repetindo a mesma dose em Curitiba, ambos os eventos — que aconteceram nos dias 01 e 02 de novembro respectivamente — tiveram duas atrações nacionais diferentes em cada cidade, dando espaço e destaque para nomes do nosso underground.
As portas do Carioca Club, já tradicional casa que recebe o festival, se colocavam abertas por volta das 14h, dando aquela sensação de passagem por um arco temporal, bem à la Outlander, pelos stands, da cenografia e principalmente a música típica que rolava pelo som do PA.
O número de aventureiros que adentravam a taverna naquela hora era enxuto, confesso, mas talvez esperado, tanto pela natureza de um festival mais longo quanto pelo reflexo do metaleiro médio que vem sendo alvejado por shows semanalmente, fazendo sua algibeira ficar cada vez mais vazia e as moedas de ouro mais esparsas.
Felizes aqueles, no entanto, que não só foram, como se propuseram a chegar cedo, pois, para além do hidromel grátis logo na entrada para limpar o paladar e a chamativa stand da Maylle Arts que se colocava logo no início, próximo ao palco já se encontravam os músicos do Nanowar of Steel transitando em total tranquilidade e atendendo a todos que iam até lá para trocar uma palavra e fazer o “sinal de coxinha” com as mãos ao tentar “parlar italiano”.

Não tardou para as cortinas se abrirem, revelando a primeira atração do dia, o trio de música tradicional irlandesa Fianna, que com muito ritmo e bom humor preencheu o espaço do Carioca, transportando a todos os presentes para os contos e histórias de outrora. Um trio, se diga de passagem, bem interessante ao unir baixo, violão e violino elétrico, em uma sonoridade daquelas que demandam os pés saltarem e os corpos se elevarem.
E dito e feito: as cabeças presentes iam desde um “iiiiiiiiihaaaaaaaaaaa” às palmas, batidas com o pé, ou danças; dentre estes, os próprios membros do Nanowar se acabavam em diversão apreciando os cânticos do antigo continente.
Músicas típicas como Drink the Night Away, Rocky Road to Dublin e Monaghan's Jig retrataram bem este trabalho que o grupo desempenha desde 2015, trazendo um gosto da cultura irlandesa para além do gosto do puro malte. Aquela sonoridade bem alto astral, que faz com que estranhos se juntem e comecem a rodar de um lado para o outro e remontam a uma época de simplicidade e um espírito de camaradagem que a banda conseguiu imprimir com êxito não só no som, mas justamente essa manifestação entre os presentes.

Nesse ritmo, e já mais próximos do fim da apresentação, foi com a clássica irlandesa Drunken Sailor que colocou a pista realmente em sintonia, em um verdadeiro momento que nunca pode faltar quando o objetivo é uma boa baderna, qu trouxe ainda a derradeira e inconfundível Shippin’ Up to Boston.
Revigorados e com aquele maior aquecimento, a momentânea pausa se mostrou boa para também checar os stands, conferindo desde a parte dos diferentes tamanhos de hidromel — até sua versão em bombom (que, se diga de passagem, estava uma delícia) — aos adereços e souvenirs que, a depender da stand, ainda surpreendiam com um “Olá, milorde”.
A essa altura a casa já começava a dar uma leve preenchida, entre aqueles que se encontravam na pista e aqueles que esbanjavam a alegria enebriante do mezanino open bar. Foi nesse ínterim que as cortinas se voltaram a abrir, dando espaço para outra viagem temporal até as terras da fantasia com a Oaklore, quarteto formado por Aruan Siqueira no bandolim, Alexandre Chamy nas vozes e violão, Fernando Del Rio na percussão e Aline Polisello nas vozes e flautas, que desde o primeiro instante no palco roubavam o olhar pela atenção aos detalhes.
Entre vestes que pareciam ter saído de uma boa sessão de RPG, as “tradições do carvalho” se impregnaram e ganhavam vida já nas hastes de suporte dos microfones, cercados por folhas e luzes que, em simplicidade, traziam aquela sensação de magia no ar. Mas era no momento em que a sonoridade do grupo ecoava que realmente os olhos se fixavam e os queixos caíam.
De uma forma muito inteligente, a banda de folk mesclou em seu repertório trilhas sonoras que aquecem todo o coração de um bom nerd — como Skyrim, Senhor dos Anéis e The Witcher — a músicas autorais como The Piper’s Gold e o fantástico Cachorro Caramelo, uma forma brilhante de misturar e diminuir as pontes entre culturas sem descaracterizar as nossas origens.

Com muito bom humor, tivemos ainda uma batalha de percussões de colheres (sim, você não leu errado), onde Chamy aparentemente se encontra há muito tempo tentando, em vão, derrotar Fernando, que simplesmente era um monstro de ritmo. Mas, sem dúvida, entre as galhofas, músicas nostálgicas e divertidas, o real roubo de cena veio de Aline, que desde sua warpaint lhe dava aquela sensação de uma bruxa pagã, que com suas caras e bocas, poderia facilmente colocar uma criança a chorar — contraste esse que se dissolvia quando surgia a sonoridade delicada da flauta, quase transmutando essa persona mais sombria em algo mais etéreo. Mas foi em sua voz que as pessoas paravam e se entreolhavam, pois a potência e o range vocal, junto a tudo que já foi dito, a colocavam como figura central da apresentação.
Fazendo jus ao nome, a Oaklore marcou presença e roubou a cena, provando que, mesmo em um cast internacional, o Brasil não deixa a desejar.
Diferentemente daqueles shows em que o público precisa ficar nos Reels do Instagram esperando o tempo passar, tivemos ainda uma apresentação performada pela Companhia Espada de Prata, na mais absoluta brutalidade controlada de um duelo entre dois guerreiros em armadura completa, que fez o tempo passar mais rápido do que deveria; afinal, era puro prazer assistir a tamanha performance visceral.
E tão já, os relógios marcavam próximos das 17h30, quando as cortinas abriram mais uma vez para talvez um dos shows mais diferentes que já pisaram pelo Brasil e pelo Odin’s: o Nanowar of Steel, quinteto italiano que há mais de duas décadas vem experimentando os limites da paródia e do bom gosto, com uma mistura de happy metal que brinca com gêneros, clássicos e grandes nomes.
Com uma formação praticamente imexida nestes mais de vinte anos — Gatto Panceri 666 no baixo, Uinona Raider na bateria, Mohammed Abdul na guitarra e Potowotominimak e Mr. Baffo nos vocais — talvez uma aproximação ao olhar para o Nanowar of Steel seria pensar em uma versão italiana do Massacration, mas com sonoridade mais puxada para um Rhapsody of Fire.
Sabe aquele “bobo que funciona”? Pois é. Uma trupe que não se leva a sério, que entra no palco com perucas de qualidade da 25 de Março e tutu roxo, do tipo que você encontraria no Carnaval do karaokê mais dúbio do bairro vizinho, mas que, nessa mistura de não se levar a sério com músicas que possuem mais trocadilhos que aquele seu tio, te pega de surpresa também pela absurda técnica vocal e a sonoridade afiada que simplesmente funciona.

Foi com essa energia que já chegaram com Sober, do mais recente Deslike to False Metal (2023), música de temática pirata à la Alestorm, mas que, ao contrário dos piratas beberrões, esbanja saúde através de exercícios físicos e muita água. Só esse início já estava sendo cantado pela grande maioria a plenos pulmões, que, para os desavisados, poderia até fazer parecer que assistiríamos a algo similar a um folk metal fantasiado. Mas é na versatilidade que o Nanowar também surpreende.
The Call of Cthulhu, do álbum Stairway to Valhalla (2018), veio na sequência, trazendo uma sonoridade diferente e muita diversão, com direito à fantasia de Cthulhu por Potowotominimak, o mestre das trocas de roupa, seguida de Pasadena 1994, outra do mais novo álbum, que foi gravada junto a Joakim Brodén, dando aquele peso de um power metal energético para narrar a triste história (para os italianos) de sua derrota para o Brasil na final da Copa de 94.
Mas se ainda havia dúvidas sobre a procedência duvidosa das músicas, a banda então surpreendeu a todos pedindo a clássica divisão do público para efetuar aquela bela Wall of Death. Mas, no caso do Nanowar, ensinaram aos brasileiros a Wall of Love, onde, ainda que houvesse a crescente da guitarra para gerar a tensão antes da trocação franca, essa antecipava um momento de abraços, cumprimentos e amor ao som de George Michael. Com isso, nem é preciso dizer que o quinteto tinha o público nas mãos.

Disco Metal, grande hino do último álbum, com um toque de disco e eletrônica, fez com que o povo medieval tivesse contato com sintetizadores, mas o absurdo tomou outro nível com a chegada de Uranus (ba dum tss), outra do álbum Starway, que ainda teve sua introdução feita durante uma rápida sessão de ventriloquismo, à medida que Mr. Baffo gentilmente separava e juntava suas nádegas, fazendo de seu popote o narrador.
Risos, riffs rápidos, bateria cirúrgica e uma mistura entre agudos e aquela nota alta segurada em grupo, somada ao coro do público de “Uranus, Uranus, Uranus”, provam o quanto a música, junto ao poder eterno da quinta série, parece quebrar barreiras e unir povos.
HelloWorld.java, do EP XX Years of Steel (2024), veio em forma de crítica a um mundo rodeado de conteúdos (incluindo música) gerados por IA e que, neste espírito, o Nanowar resolveu transformar em uma música sobre desenvolvedores. Il cacciatore della notte, única música presente no set do A Knight at the Opera (2014), foi praticamente uma lição de Duolingo onde a banda ensinou o público a “parlar” em italiano, fazendo todos cantarem o grande épico sobre a coruja Barbagianni. Mas foi talvez em Norwegian Reggaeton, a música mais esperada da noite, que houve também o inesperado.
Durante seu início, tudo corria bem: Mr. Baffo entrava montado em um golfinho inflável aos saltos; Potowotominimak, que mal tinha tirado sua fantasia de coruja gigante, segurava em seu cinto um braço de guitarra em formato de acessório enquanto seguia os riffs de Abdul; e as primeiras notas da música que une o povo latino ao nórdico e ressignificam o conceito de “tupiniviking” se davam. Importante ressaltar que, de forma satírica, em muitos momentos da música se faz referência ao Burzum, nome polêmico do meio do black metal, especialmente pela figura de Varg Vikernes, que, ao contrário do que todos esperavam, não restringiu sua “aparição” apenas às piadas e partes da música.
À medida que a música se desenrolava, do meio do público uma pessoa subiu nos ombros da outra e uma bandeira foi erguida. Simplesmente: a ilustre imagem de Vampeta da G Magazine de 1999, com suas “partes” encobertas pelo rosto de Varg em uma bandeira. Pois é. Já é comum encontrarmos bandeiras estilizadas em homenagem às bandas que vêm ao Brasil, mas nunca me ocorreu, nem em um milhão de anos, que um dia seria testemunha de um Vampetaço em forma de bandeira durante Norwegian Reggaeton. Mas, ao mesmo tempo, sendo Nanowar of Steel, talvez devêssemos esperar um pouco de tudo.

Após esse momento — que, se diga de passagem, colocou o Carioca Club abaixo, ainda que às custas do não entendimento da banda sobre a inusitada bandeira — seguimos o repertório até o fatídico hino de louvor chamado Vallhaleluja, um épico que reconta a lenda de Odin como um deus atualizado, que deixou os dias de sangue e sacrifícios (assim como Deus do Velho Testamento) para se tornar um prodígio carpinteiro, designer da IKEA. Momento este onde, ainda ao longo do solo, Potowotominimak literalmente sacou de uma sacola uma mesa desmontada da IKEA, a qual montou em pleno louvor e júbilo do público, à medida que um tímido crowdsurfing acontecia até cair nas mãos de alguém que claramente estava precisando de uma mesa de centro.
Mas para quem achou que a festa tinha terminado ali, ao som de El Baile del Perrito, clássico latino dos anos 90 sobre um cão dançante, simplesmente Mr. Baffo desceu do palco puxando um trenzinho entre o público, que circulou por todo o espaço do Carioca Club até despontar no centro com os outros membros já dançando entre si e iniciando aquele “túnel” de festa junina, onde o trenzinho começou a passar por baixo, aumentando o túnel até chegar ao seu fim em uma verdadeira festa dançante. Isso, senhoras e senhores, é como se finaliza uma performance com estilo.

Extremamente difícil foi a ideia de pegar toda a euforia criada pelo momento e transformar aquela energia caótica que o Nanowar produziu para regular o ambiente novamente e preparar o público para algo mais sério. Isso porque, a seguir, teríamos ainda os grandes headliners da noite: os holandeses do viking metal do Heidevolk, que precisariam reconverter seus devotos fiéis — recentemente convertidos ao carnaval non-sense — de volta ao paganismo.
Mas antes que estes pudessem atingir os palcos, talvez alguém responsável por ajeitar o clima tenha sido Raven, dançarina de dança do ventre que já havia feito sua aparição no Liddledin e retornava para outra performance de prender a respiração e permitir a hipnotização pelo seu talento e pela energia mística que coloca em palco.
Essa “ancoragem”, diria eu, foi fundamental para preparar o público para uma guinada de gênero em termos de apresentações musicais. E, justamente, pouco tempo depois, subiam ao palco Rowan Roodbaer (baixo), Koen Vuurdichter (guitarra), Mat van Baest (guitarra), Kevin van den Heiligenberg (bateria) e os vocais de Daniel Wansink e Jacco de Wijs. E realmente, não parecia que há poucos minutos você tivera visto um monte de brutamontes “soltando a franga”, já que o clima agora era de completa tensão pré-batalha.
Abriram com Hagalaz, de seu mais recente álbum, Wederkeer (2023), imediatamente fazendo os horns (de mão) irem ao ar enquanto os de acessórios alcoólicos iam às bocas. Seguiram com Klauwen Vooruit, do mesmo álbum, e Winter woedt in mijn hart, de Velua (2015). A essa altura, as primeiras rodas já se instauravam no que viria a ser um pequeno, porém constante vórtice humano tomando a parte central da pista durante o restante da noite.

Urth, também de Wederkeer, seguiu a linha, mas foi com a chegada de A Wolf in My Heart, do álbum Vuur van Verzet (2018), que tudo pareceu escalar. Público e banda em pura sinergia primal — talvez efeito do canto em sua língua-mãe — onde vale o destaque para a intensidade da complementariedade entre as vozes, algo sempre característico da banda e que na dupla Wansink e Wijs encontra esse equilíbrio entre timbres mais baixos, limpos e melódicos, somados àquele grave mais terroso. Em termos de sonoridade, tudo estava muito polido, limpo e pesado, dando aquela elevação e força que parece fazer todos curtirem o momento, mesmo com a existência das críticas ao Heidevolk atual ser um “cover de luxo”, já que desde 2022 não contam com nenhum membro original na banda.
Nesse sentido, os vocais acabam por ser também mais criticados pelas diferentes fases tidas na banda, mas não deixaram a desejar conforme tocaram grandes clássicos — de Ostara a Saksenland.
Como diz a própria música Drink op de Goden (Valhalla), o clima era o de uma festa vigorosa, entre a violência contida e até momentos de remadas, com o público se enfileirando para fazer o famoso “barquinho viking”, tornando a experiência do show a mais intensa e divertida possível.
Mas impossível não se deixar levar com talvez a música mais conhecida e esperada da noite, Vulgaris Magistralis, o curioso caso de uma bonus track que parece ter se tornado a faixa mais relevante de toda a discografia da banda, onde o público arriscava um holandês junto a um “Arru, Arru, Arru”, jogando os punhos para o alto e batendo cabeça com a banda.

Com Nehallenia fechando o set, a sensação que ficou foi a de um banquete há muito pedido, finalmente trazendo saciedade aos fãs do Odin’s que, ano após ano, pelos últimos nove, vinham pedindo o retorno da banda, que entregou com excelência um grande show. Se fosse para arriscar alguma crítica, no entanto, é fato que pensar em folk é pensar em orquestrações e instrumentos que por vezes acabam tornando a banda muito grande e pouco praticável em uma turnê, especialmente para locais distintos como aqui. Mas ter 100% de certos instrumentos de corda e sopro na forma digital parece, sim, roubar um pouco dessa magia medieval que o folk proporciona e que, inclusive, foi muito bem representada por conjuntos nacionais mais enxutos e “simples”, nesse sentido.
Mas ainda que dito isso, a apresentação foi sim divertida e veio para sedimentar mais um ano do Odin’s Krieger Fest como um importante baluarte da troca de culturas entre países e épocas, conseguindo proporcionar ao público aquelas bandas que normalmente não se esperaria ver, ao mesmo tempo em que conferindo destaque para nomes do nosso underground que conseguem estar à altura desses gringos.
Com um público muito mais cheio do que no início, de fato este pode não ter sido o Odin’s mais abarrotado. Mas, certamente, para quem o vivenciou, pode ter sido um dos mais inesquecíveis pela diversidade, pela dinâmica e pelos momentos construídos.